Absurdos da liberdade e opressão

Um pacato vilarejo no interior do País, num dia como qualquer outro, amanhece e se depara com um grupo de estranhos visitantes; acampados no terreno de uma tapera das imediações. Ninguém sabe quem são, de onde vêm e o que fazem, além. de erguer tendas e construir cercas. Homens duros, insociáveis e taciturnos, passam a oprimir e explorar os moradores de Manairarema. Deles, usurpam a dignidade; transformam cidadãos pacíficos em beligerantes raivosos, valentões em cordeiros. O que está acontecendo? Ninguém sabe responder.
As surpresas se sucedem. A cidade é invadida por uma matilha, cães que saem dos acampamentos dos estranhos e sitiam os moradores em suas casas, por dias e dias, latindo, rosnando e ganindo. Como por mágica, voltam para a tapera. Logo depois aparecem os bois, às centenas, sujando as ruas e os quintais, berrando e ruminando dias e noites. A cidade sofre, sem capacidade de reagir ao que ela desconhece e que é dotado de uma extraordinária força maléfica. Assim como vieram, os estranhos visitantes se vão e, por fim, todos podem respirar aliviados e retomar suas rotinas.
Isso será possível? A Hora dos Ruminantes, segundo livro de José Jacinto Veiga (nome de nascimento), ou José J. Veiga (adotado por sugestão do amigo Guimarães Rosa), é, sem dúvida, uma fábula generosa que permite várias leituras, sejam no contexto da fantasia ou no da realidade. Grande parte dos professores e/ou estudiosos da literatura brasileira vê nessa obra uma crítica ao regime militar, instaurado dois anos antes do lançamento do livro, em 1966. Coincidência ou não, A Hora dos Ruminantes traduz a essência dos regimes autoritários em que o cidadão comum se vê, de um momento para outro, privado de seus direitos e da sua liberdade. Humilhado e oprimido, reage ou não, de forma particular ou social, de acordo com a sua capacidade psicocultural.
Manairarema pode ser um retrato do Brasil pós-64. Mas, com certeza, faz parte de um universo onde se denunciam os abusos que estão, estruturalmente, ligados ao poder. José J. Veiga faz essa crítica com a autoridade de quem foi perseguido pelo getulismo, tendo sofrido na pele as conseqüências de seu posicionamento político antiintegralista e antifascista.
Em A Hora dos Ruminantes os signos kafkianos também estão presentes no absurdo que se mostra como um retrato do real e, reciprocamente, a realidade com as suas aberrações. Lendo-o, torna-se quase impossível não estabelecer um paralelo com Gabriel García Márquez, embora o autor não reconheça o estilo denominado "realismo fantástico" que atribuem à obra do colombiano.
A Hora dos Ruminantes é uma leitura indispensável para quem quer conhecer um Brasil sertanejo e universal, se perder nas fantasias e nos absurdos que, dentro de uma percepção própria, levarão a uma atitude indagativa da vida com todos os seus símbolos reais e oníricos, de liberdade e opressão.

[osair de sousa]

Comentários

Anônimo disse…
Oi, Manassan. Também vim te visitar rapidinho. Mas depois volto com mais vagar, para comentar. Abraço.
Tenho também um flickr:
http://www.flickr.com/photos/cassia_fernandes/